A escravidão indígena nas raízes do Brasil

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7 min readNov 13, 2019

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Em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda há uma exposição acerca da escravidão no país, em que o negro é a figura central e o indígena é descrito como distante do “estigma social ligado à escravidão”¹ e retratado como “menos compatível com a condição servil”². No entanto, pesquisadores³ apontam evidências históricas que sugerem outra configuração na estruturação da mão-de-obra escravizada no Brasil, em que a escravidão indígena foi expressiva e intensa, perdurando até o século XX, diferentemente da exposição de Holanda (1995 [1936]) e da historiografia brasileira de modo geral.

Neste sentido, é necessário apresentar de antemão duas diferenças indispensáveis na configuração da escravidão negra e da escravidão indígena: 1) enquanto a primeira é mais lucrativa para a metrópole, a segunda tem o caráter de ser um negócio interno da colônia à medida que “os ganhos provenientes desta atividade permaneceriam com os colonos” (RAMINELLI, 1996, p. 15); 2) o preço médio de um indígena geralmente era inferior ao preço médio de um africano, em que na segunda metade do século XVII o primeiro variava entre 4$000 e 25$000⁴ e o segundo, 50$000 (MONTEIRO, 1994, p. 156). Já no século XIX, o valor do indígena era de 60 mil-réis (DORNELLES, 2018, p. 88), ao passo que do africano variava entre 500 mil-réis e 1 conto e 300 mil-réis (ALMEIDA, 1994; RIBEIRO, 2017).

Faz-se fundamental especificar previamente estas duas características nos sistemas de escravização de indígenas e negros, pois, o fator do poder aquisitivo dos colonos é fundamental para analisar a composição da mão-de-obra escravizada no país. Deste modo, a configuração da escravidão indígena permitia acumulação de capital aos colonos e, consequentemente, uma ascensão financeira, principalmente, de colonos localizados em províncias que estavam fora do centro das relações colônia-metrópole e produzindo uma posterior autonomia financeira em relação à metrópole/Coroa.

Como exemplificação, tem-se a província de São Paulo de Piratininga (atual Estado de São Paulo), que teve como base de sua produção colonial o uso da mão-de-obra escravizada indígena (RIBEIRO, 1984; MONTEIRO, 1994; SANTOS, 1998; DORNELLES, 2018), o que resultou em um acúmulo de capital aos colonos paulistas, proveniente do caráter de negócio interno da escravidão indígena, e, assim, permitindo seu crescimento e desenvolvimento econômico, vindo a se tornar a potência financeira do país, desde o século XX, responsável por 32% do PIB brasileiro⁵.

Buarque de Holanda defende que

O reconhecimento da liberdade civil dos índios — mesmo quando se tratasse simplesmente de uma liberdade “tutelada” ou “protegida”, segundo a sutil discriminação dos juristas — tendia a distanciá-los do estigma social ligado à escravidão (HOLANDA, 1995, p. 56)

Contudo, as leis de 1570⁶, 1755⁷ ou 1831⁸ referidas à liberdade civil dos povos indígenas não garantiam de fato a liberdade, pois, eram repletas de restrições que constituíam um cenário das “permanências dos cativeiros” (CÔRREA & VALE, 2013, p. 10). Assim, ao longo dos séculos, há registros de diferentes nomenclaturas para se referir ao trabalho indígena, a exemplo de escravidão voluntária, guerra justa, servidão e administração, em que, no entanto, era a continuidade do sistema escravista na prática (MALHEIRO, 1867; RAMINELLI, 1996; NETO, 2006; CÔRREA & VALE, 2013), ou seja, a escravidão indígena manteve-se persistente sob a égide de outras designações a fim de maquiar a mão-de-obra regida pelo sistema escravista.

Para melhor compreensão acerca da escravidão indígena, faz-se fundamental expor que sua configuração era de caráter provincial, de modo que embora houvesse a criação das Leis Reais (vide as supramencionadas), as províncias adquiriram a autonomia — resultante das revoltas e conflitos entre colonos e Coroa, pois, “os senhores de escravos índios perderiam a sua única fonte de mão-de-obra disponível e a sua principal mercadoria, o escravo indígena” (PINHEIRO, 2007, p. 1) — para criar legislações acerca do trabalho indígena, possibilitando, portanto, o entendimento legal da escravidão indígena e seu uso como mão-de-obra nas províncias.

De forma a exemplificar o caráter provincial da regulamentação do trabalho ou escravidão indígena, tem-se a Carta Régia de 1798 que abolia o Diretório dos Índios adotada no Espírito Santo e Pará; a Guerra Justa de 1811 adotada em São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Pará e Goiás; a lei provincial de Guerra Justa de 1835 em Goiás; a Resolução do Conselho Geral da Província de Goiás; o Corpo de Trabalhadores de 1838 no Pará; a lei provincial da Criação de Missões Religiosas na Bahia (MACHADO, 2017).

À vista disso, em contraposição a Holanda, o emprego do braço indígena não foi frustrado tampouco se estabeleceu como um recurso mais difícil, de forma a necessitar ser substituído pela mão-de-obra escravizada africana, pois, como apresentado, houve uma extensa e duradoura utilização da mão-de-obra indígena escravizada no Brasil, inclusive mais barata e acessível aos colonos, a exemplo de Curitiba, que até 1740, 60% da mão-de-obra da região era composta por indígenas administrados (DIEHL, 2015, p. 1).

Dessa maneira, “o conteúdo das fontes oficiais sobre a escravidão indígena não deve ser confundido com o que aconteceu no âmbito das relações sociais” (DIEHL, 2015, p. 2), haja vista a disputa entre escravizar indígenas pela força bruta (colonos) e explorar a mão-de-obra indígena sob o pretexto da catequização (jesuítas), gerando conflitos e revoltas dos colonos com a Coroa e a Igreja e, a partir disso, agirem a partir de seus próprios interesses e benefícios, visando o lucro e acúmulo de capital, proporcionado justamente devido o caráter da escravidão indígena enquanto negócio interno da colônia.

A exposição de Holanda é fundamental para compreender uma parte história do Brasil, no entanto, para se falar em raízes do Brasil, é preciso que se considere os primeiros povos a habitarem este território, buscando trazer à tona a parte da história que fica relegada ao segundo plano nas análises histórico-sociais do país. Buscar reconstruir o papel da escravidão indígena a partir de evidências nos registros e documentações históricas que previamente foram ignorados, assim, desmistificando o pensamento de que a mão-de-obra indígena escravizada foi simplesmente substituída pela negra.

Em suma, a partir de uma breve exposição sobre a escravidão indígena no Brasil, suscita-se a possibilidade de uma nova investigação e reflexão sobre a constituição histórica e social do país, de forma a ponderar os processos referentes aos povos indígenas ao longo dos cinco séculos enquanto constitutivos e estruturantes das raízes do Brasil, e não mais como uma contribuição irrisória alegorizada entre os séculos XVI ao XVIII.

Foto: Wikipedia

Notas:

¹ HOLANDA, S. B de. Raízes do Brasil, p. 56

² Idem.

³ MALHEIRO, 1867; RIBEIRO, 1984; MONTEIRO, 1994; RAMINELLI, 1996; SANTOS, 1998; RAMOS, 2004; AMANTINO, 2006; NETO, 2006; SPOSITO, 2008; CÔRREA & VALE, 2013; MEIRA, 2017, DORNELLES, 2018

⁴ Indígenas recém-egressos do sertão eram vendidos ou leiloados na média de 4$000, enquanto indígenas já moldados ao modelo de trabalho escravista custavam em torno de 25$000

⁵ Segundo o IBGE. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/economia/2016/11/cinco-estados-concentram-65-do-pib-sao-paulo-perde-participacao-9933.html>. Acesso em: 04 set. 2019

⁶ Lei sobre a Liberdade dos Gentios, promulgada por Sebastião I, declarava livre os indígenas, exceto aqueles sujeitos à Guerra Justa

⁷ Diretório dos Índios, a política pombalina, em que concedia a liberdade ao indígena de forma a ser administrado por um diretor, mas permitia utilizar todo e qualquer meio para “civilizar os índios selvagens”

⁸ Lei que revogava as Cartas Régias que permitiam a Guerra Justa, declarando os indígenas como órfãos e sob tutela da nação

Referências bibliográficas:

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CÔRREA, H. M. M. & VALE, E. P. Sob leis e regimentos: os índios e a prestação de serviços no Maranhã e Grão-Pará (1640–1660). XXVII Simpósio Nacional de História, Natal, 2013

DIEHL, I. L. A administração particular de índios: questões legais e práticas sociais no Sul do Brasil setecentista. XXVIII Simpósio Nacional de História, Florianópolis, 2015

DORNELLES, S. S. Trabalho compulsório e escravidão indígena no Brasil imperial: reflexões a partir da província paulista. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 38, n. 79, 2018

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