A presença indígena em São Paulo não parou no século XVIII

lai
7 min readDec 17, 2019

--

Em Brancos e Negros em São Paulo, os autores Roger Bastide e Florestan Fernandes fazem um ensaio sociológico em torno da formação, manifestações e efeitos do “preconceito de cor” a partir do contexto da cidade de São Paulo, de modo que, assim como se evidencia pelo título da obra, a narrativa é centralizada na figura do negro em relação com o branco. Ao iniciar a exposição, explicita-se uma introdução com a presença da escravidão indígena na história paulista a partir da perspectiva da situação racial, redigida por Fernandes.

Todavia, há uma controvérsia na construção expositiva da questão racial, pois, a presença indígena é relegada unicamente ao primeiro capítulo, de forma a sumir, inclusive, das estatísticas populacionais, a exemplo dos dados referentes a 1797, cuja população se distribui nas categorias branco, negro e pardo (BASTIDE & FERNANDES, 1959, p. 16), enquanto em 1766,

toda a capitania contaria com 39.034 habitantes, pouco mais ou menos. Vilhena aceita como exatas certas indicações, concernentes ao mesmo quartel desse século, segundo as quais viveriam na capitania 52.611 indivíduos, dos quais 11.098 brancos, 32.526 índios e 8.987 negros (BASTIDE & FERNANDES, 1959, p. 15)

Mais adiante, em 1836, a população indígena vai de 32.526 para 825, ao passo que os brancos crescem para 172.879 e negros para 79.022, além de 74.176 pardos (BASTIDE & FERNANDES, 1959, p. 26). Há, no mínimo, o questionamento em torno da veracidade destes dados que amparam a exposição de Florestan Fernandes em torno da questão indígena, pois, “sabia-se que os índios constituíam boa parte da mão de obra das fazendas dos sertões paulistas em meados do século XIX” (DORNELLES, 2018, p. 91).

Dessa maneira, antes de se observar o apagamento indígena na distribuição populacional paulista, deve-se retomar a escravidão indígena, pois, é a partir do argumento de substituição da mão-de-obra indígena escravizada pela negra que se sustenta uma presença irrisória dos povos indígenas na exposição de Florestan Fernandes e, de modo geral, em toda a obra Brancos e Negros em São Paulo.

Diferentemente da ideia que Fernandes apresenta: “a abolição definitiva da escravidão indígena acentuou a eliminação do braço indígena” (BASTIDE & FERNANDES, 1959, p. 16), a escravidão indígena não foi abolida em 1755–1758 com a Lei de Pombal, pois, esta fora revogada em 1798, dando seguimento às Cartas Régias de 1808 que tratavam novamente sobre a escravização legal de indígenas, sob a alcunha de Guerra Justa.

Assim, a expressão cujas origens remontam aos tempos coloniais readequava-se às prerrogativas legais e interesses específicos de parte da elite política paulista no Oitocentos, permanecendo, contudo, conectada à condição escrava que as populações indígenas experimentaram no passado (DORNELLES, 2018, p. 91)

Ademais, a partir do entendimento da tutela aos povos indígenas, que preconizava o reconhecimento da incapacidade de autoadministração dos indígenas, os colonos configuraram-se como seus administradores, de modo que “produziram um artifício no qual se apropriaram do direito de exercer pleno controle sobre a pessoa e propriedade dos mesmos sem que isso fosse caracterizado judicialmente como escravidão” (MONTEIRO, 1994, p. 137).

Neste contexto de manobras jurídicas dos colonos para burlarem as legislações referentes à mão-de-obra indígena escravizada, há a promulgação da Lei de 1831 que revogou as Cartas Régias e extinguiu a escravidão indígena (MALHEIRO, p. 138). Contudo, com a Lei de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional à Constituição do Império) descentralizou-se a política no país, configurando a formação de uma nova divisão de poder que “na ausência de uma legislação nacional que orientasse a política indígena, as províncias passaram a elaborar suas políticas de acordo com os interesses do poder dominante local” (LEITE NETO, 2006, p. 120). Deste modo, “a escravidão indígena, de forma aberta ou velada, irá permanecer viva até mais ou menos meados do século XIX” (LEITE NETO, 2006, p. 117), em que o estatuto jurídico referente aos povos indígenas condicionou, ao mesmo tempo, a proibição e causa da escravização de indígenas durante o período oitocentista (DORNELLES, pp. 101–102) por conta de sua instabilidade e descentralização.

Dessa forma, não há de fato uma “eliminação do índio pelo negro na organização do trabalho escravo” (BASTIDE & FERNANDES, p. 14) em São Paulo, pois, além da escravidão indígena ser lucrativa para os colonos, haja vista que “os ganhos provenientes desta atividade permaneceriam com os colonos” (RAMINELLI, 1996, p. 15) e era baixo o preço de indígenas escravizados em comparação aos negros (MONTEIRO, 1994, p. 156), “os senhores de escravos índios perderiam a sua única fonte de mão-de-obra disponível e a sua principal mercadoria, o escravo indígena” (PINHEIRO, 2007, p. 1). Neste contexto, configura-se, portanto, que a base de toda a produção colonial da província paulista é de uso de mão-de-obra escravizada indígena (RIBEIRO, 1984; MONTEIRO, 1994; DORNELLES, 2018), em que “sem a arregimentação do índio, não haveria força motriz capaz de implementar fortificações, vilas, engenhos e plantações” (RAMINELLI, 1996, p. 15).

A partir de uma “contra-exposição” introdutória em torno da escravidão indígena em São Paulo, depreende-se a questão da composição étnico-racial paulista (e paulistana) levantada por Florestan Fernandes, em que se há o questionamento sobre o desaparecimento da população indígena que era majoritária em 1766, mas desaparece por completo três décadas depois — em informações retiradas de um Documento do Arquivo do Estado de S. Paulo, conforme exposto por Fernandes (1959, p. 16). Ao passo que, citado por Florestan Fernandes, Daniel P. Müller explicita os dados de 1836, em que reaparecem 825 indígenas como nota de rodapé na distribuição étnico-racial da população paulista.

Há, portanto, um cenário de que em um período de 60 anos, a população indígena em São Paulo faz o movimento de ser majoritária (61% em 1766), sumir (em 1797) e reaparecer de maneira irrisória (0,25% em 1836). Tais mudanças abruptas em torno da presença indígena nos dados expostos por Fernandes não se explicariam nem se realmente a mão-de-obra indígena escravizada tivesse sido substituída preponderantemente pela negra, pois, se tivesse ocorrido uma migração massiva ou, quiçá, um genocídio contra esses mais de 30 mil indígenas, de forma a buscar justificativa na expressiva diminuição dessa população, haveria documentações e evidências históricas. Todavia, não há.

Outro ponto a ser colocado é que brancos, negros e pardos tiveram crescimento populacional, seja por imigração ou reprodução, no entanto, o desaparecimento e/ou redução da presença indígena sugere que não houve migração, tampouco reprodução entre povos indígenas. Uma percepção de caráter inverossímil, pois, de que forma se explicaria a presença indígena nos séculos posteriores ao XVIII, seja em São Paulo ou no Brasil, senão através da procriação?

Deste modo, coloca-se em voga uma análise em torno da presença indígena em São Paulo, que busca reconhecer que essa população não deixou de existir ou de que decresceu drasticamente, mas que “no contexto da legislação brasileira que, propondo uma integração dos índios à sociedade nacional, buscava promover a invisibilidade destes” (LEITE NETO, 2006, p. 120). Em outras palavras, as políticas de apagamento indígena foram sistematicamente realizadas por particulares e pelo Estado, promovendo a invisibilidade e negando insistentemente a existência destes povos, através das políticas de assimilação cultural e integração social, permitindo que se estabelecesse a disseminação e naturalização da ideia do desaparecimento e decréscimo da população indígena em São Paulo (e no Brasil).

Entretanto, na verdade, indígenas foram realocados em outras categorias sociais e, consequentemente, raciais, como Monteiro (1994) acriticamente (e quiçá de maneira desintencionada) sugere: “contudo, de modo paradoxal, o que restou após a rápida destruição de tantas terras e de tantos índios foi justamente um campesinato empobrecido” (MONTEIRO, 1994, p. 226). Neste sentido, torna-se interessante pensar uma investigação acerca dos estudos sobre o campesinato brasileiro ou os sitiantes, como em Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976), Eunice Durham (1973) e Antonio Candido (1964), pois, há uma vasta documentação em torno dos costumes culturais, alimentares e religiosos dessas comunidades que evidenciam uma forte associação com as populações indígenas, de modo a se pensar novamente sobre o apagamento indígena que se constituiu no Brasil e desnaturalizar o discurso de identidades caipiras, campesinas, sertanejas e caiçaras, provocando a reflexão em torno dos motivos desse não-reconhecimento enquanto indígenas.

Exposição temporária “Ser Essa Terra: São Paulo, Cidade Indígena” no Memorial da Resistência de São Paulo, com duração de 24 de novembro de 2018 a 22 de abril de 2019

Referências bibliográficas:

CANDIDO, A. Os parceiros do rio Bonito: estudos sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964

DORNELLES, S. S. Trabalho compulsório e escravidão indígena no Brasil imperial: reflexões a partir da província paulista. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 38, n. 79, 2018

DURHAM, E. A caminho da cidade: a vida rural e a migração para São Paulo. São Paulo: Perspectiva, 1973

LEITE NETO, J. Índios e Terras — Ceará: 1850–1880. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2006.

MALHEIRO, A. M. P. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1867

MONTEIRO, J. M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

PINHEIRO, J. A. U. Conflitos entre jesuítas e colonos na América Portuguesa: 1640–1700. Campinas: Unicamp, 2007

QUEIROZ, M. I. P. de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976

RAMINELLI, R. Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996

RIBEIRO, B. G. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global, 1984

--

--