Como a leitura social não dá conta da questão indígena

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6 min readJun 21, 2019

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Mulheres indígenas

Quando a gente fala que leitura social é algo que não faz sentido pra indígenas é porque estamos falando sobre uma sociedade que imagina o indígena a partir de um estereótipo, do índio, que foi construído pelos brancos e não condiz com a nossa pluralidade étnica.

Não é na maldade ou alguma tentativa de deslegitimar o fator da leitura social, mas trazer à tona que as pessoas precisam conhecer o que foi e é o etnocídio, como se aplicou/aplica, como está enraizado e é extremamente naturalizado no pensamento brasileiro.

Vou dividir em partes, porque senão fica muito confuso.

1º) Praticamente ninguém é lido socialmente como indígena nesse país.

É sério! E isso é válido inclusive pra indígena que moram em aldeia.

É muito comum ouvirmos que somos “só descendentes” ou que já não somos mais índios porque estamos falando português, usando roupa, celular… essas “coisas de branco”.

Tem também indígenas que o próprio governo chama de “índio falso”, a exemplo dos Gamella (aquele caso que indígenas tiveram as mãos decepadas, foi desse povo), fazendo a sociedade reproduzir esse discurso.

Nem mesmo nossas grandes lideranças, reconhecidas ATÉ internacionalmente, estão livres de terem sua identidade indígena questionada. Por exemplo, muitas pessoas dizem que a própria Sônia Guajajara é “descendente” ou “nem é indígena”. Ela deixa de ser? Óbvio que não, mas o ponto é justamente esse: nem mesmo indígenas que são bem colados no estereótipo do índio (que alguns gostam de chamar de “traços indígenas”, mas eu discordo desse termo que vou explicar mais adiante) ou que são lideranças estão livres de terem sua identidade étnico-racial questionada, porque no imaginário das pessoas, indígena é aquele ser do passado, parado no século XVI, que vive pelado no meio do mato, isolado, sem falar português, selvagem e tals, com cabelo liso lambido, olho puxado e a pele algo meio cor de terra.

Mulheres indígenas

É, realmente, nós temos a cor da terra. Vários e vários parentes falam isso, por isso, temos diferentes tonalidades de pele… desde a mais clara até a mais retinta.

Enfim, voltando…

Além de praticamente ninguém ser lido como indígena por conta do estereótipo do índio, tem também a noção do indígena como categoria social transitória. Essa era uma concepção presente no Estado brasileiro até os anos 70! Como assim? Com os processos de integração social e assimilação cultural, deixaríamos de ser indígenas e viraríamos cidadãos brasileiros, daí entrando em outras categorias raciais, mas mais comumente no pardo.

Essa noção deixou de ser oficializada pelo Estado, mas ainda é perpetuada pela sociedade brasileira.

Então, vem a segunda parte: o etnocídio.

É simplesmente impossível falar sobre tudo o que abrange o etnocídio em um só texto. Eu mesma tenho uma “série” que chama “Falando sobre etnocídio”, em que escrevo textos falando sobre suas diferentes manifestações (tô atrasada há mais de um ano pra publicar o segundo episódio, mas é que eu me inspirei em Sherlock, fazer o quê kkkk).

Resumidamente, o etnocídio é (a tentativa do) o extermínio das identidades e culturas indígenas. A metáfora do Quati César ilustra muito bem esse processo de transformação do “índio” em “não-índio”. Leia aqui: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1457-o-quati-e-os-indios-remeiros-no-arsenal-da-marinha-do-rio

O etnocídio foi tratado em estágios, assim como na metáfora. Ele é mais complexo, mas é interessante para se introduzir a questão. O que isso tem a ver com a leitura social, né? Então, o estereótipo do “índio” só foi possível por conta da estrutura etnocida do Estado, porque com o apagamento da diversidade étnica e da pluralidade fenotípica dos povos originários, permitiu-se criar um imaginário do índio, como se TODOS os povos indígenas fossem assim. Sim, há povos que estão ali de acordo com esses traços do “índio”, mas há muitos que não estão e continuam sendo indígenas. Não são menos indígenas também, importante ressaltar.

Mulheres indígenas

E aqui entra a minha crítica ao que dizem como “traços indígenas”, porque não se leva em conta essa enorme pluralidade, que acaba sempre focando no que foi estereotipado. Isso acaba apagando diversos povos que não se enquadram dentro desse estereótipo. O que daí já fica mais fácil de se entender sobre a primeira parte.

Mas também não é só isso (é, somos complexos, mas na verdade é simples): houve também a miscigenação (forçada ou não).

Pra isso, vou dar um pause na explicação da leitura social e retomar um pouco a questão da noção do índio: ela evoca a ideia de purismo racial. Ou seja, índio pra ser índio não poderia se misturar com outras raças (as vezes nem outros povos indígenas também), porque com essa mistura, ele já deixava de ser indígena, virava descendente apenas (aqui também é uma outra manifestação do etnocídio).

E essa configuração ~purista~ se deu única e exclusivamente com indígenas nesse país, porque por mais que houvesse a política de embranquecimento, o etnocídio é outra coisa. Os brancos não deixam de ser brancos nem os negros deixam de ser negros por conta de alguma mistura… digo, as pessoas são brancas, não “descendente de brancos”; as pessoas são negras, não “descendente de negros”. Mas indígena deixava e deixa no pensamento brasileiro… mas na realidade, continuamos sendo indígenas.

Deu pra entender a diferença?! Espero que sim.

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Então, voltando com a questão da miscigenação… é ÓBVIO que indígenas também tiveram relacionamentos inter-raciais, com brancos e negros, fossem eles provenientes do sequestro e estupro ou de relações saudáveis. Não importa, o ponto é: a partir do momento que esse relacionamento inter-racial acontecia, a criança gerada por essa mistura poderia ser branca, preta ou parda, mas já não seria mais indígena somente “descendente de indígena”.

E aí pronto, com isso piorou ainda mais a questão da leitura social, porque daí você tem indígenas que são frutos de miscigenação e/ou que não correspondem ao estereótipo dizendo que são indígenas, mas como são? Eles nem “parecem índios”, então aí tu volta lá pro começo e tenta entender o porquê de praticamente ninguém ser lido socialmente como indígena nesse país.

Os povos do Nordeste e Sudeste são os que mais enfrentaram essa questão, porque o contato foi MUITO mais intenso com os não-indígenas nessas duas regiões.

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Então, você tem um longo histórico de contato com não-indígenas, a construção do estereótipo do índio e os “traços indígenas”, toda a questão do etnocídio e pronto, tem esse resultado: indígenas que não são vistos como indígenas, porque 1) não condizem com o estereótipo; 2) tiveram políticas forçadas de apagamento da identidade indígena; 3) processos migratórios forçados; 4) sequestros; 5) a miscigenação com não-indígenas. E por isso muitos não se enxergam/se autodeclaram como indígenas nem são “lidos” como tal. Mas são indígenas sim.

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Fotos retiradas dos livros: Mulheres Indígenas da Tradição, Pelas Mulheres Indígenas e Natyseño: trajetória, luta e conquista das mulheres indígenas

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