O fenômeno da “tupinização”

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6 min readDec 22, 2020

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O fenômeno da “tupinização” de povos e línguas indígenas é uma ferramenta do projeto colonial, que perpetua o apagamento da diversidade dos povos originários por meio do etnocídio e epistemicídio

Há de se reconhecer a pluralidade de nossas línguas e culturas 🏹

Atualmente, há 274 línguas indígenas [re]conhecidas no que é chamado Brasil, agrupadas dentro de troncos e famílias linguísticas. Essas classificações não são estáticas nem há um consenso, haja vista que foram elaboradas por antropólogos e linguistas não-indígenas, a partir de critérios arbitrários e, por vezes vezes, estranhos aos povos originários, no sentido de trazerem elementos de fora de seus contextos relacional — a ver com interetnicidades — e cosmológico para analisar comparativamente suas línguas.

Mas a partir do que se está colocado, há dois grandes troncos linguísticos (Tupi e Macro-Jê) com famílias linguísticas que contêm línguas indígenas. Há também:

  • outras famílias linguísticas fora dos troncos Tupi e Macro-Jê
  • casos da presença de dialetos dentro de algumas línguas indígenas

O tronco Tupi agrupa mais de 40 línguas indígenas atualmente.

Há também o que se chama de Tupi Antigo, que é a língua dos Tupinambá que os jesuítas estudaram no início da invasão. Desses estudos, tudo o que se assemelhava sonoramente, na audição dos invasores, foi categorizado como Tupi. 🤡

Ou seja, historicamente, os invasores nomearam diferentes línguas de diferentes povos genericamente como Tupi, produzindo a massificação da narrativa “idioma dos índios Tupi” ou “língua Tupi”.

Em outras palavras: “índios Tupi” poderiam ser diversos povos e “língua Tupi” poderia ser uma variedade de línguas indígenas

🔍 Nota 1: referências antes do século XIX à classificação binária “tupi x tapuia”, em que há os “índios Tupi”, não corresponde necessariamente ao agrupamento linguístico no tronco Tupi atualmente

🔍 Nota 2: referências à denominação genérica “língua Tupi” feitas por não-indígenas não corresponde às línguas Tupi que hoje são faladas por diferentes povos, como Tupinikin, Tupinambá, Potyguara e Tabajara, cada qual com sua variedade a partir de suas relações e cosmogonias

O fenômeno da “tupinização” recorre a um apagamento da pluralidade linguística nos povos indígenas, promovendo um desconhecimento na população não-indígena acerca de nossa diversidade.

O problema não está na língua Tupi, muito menos nos povos falantes de Tupi, mas na falsificação de uma massa homogênea em torno das línguas e mesmo dos povos indígenas como um todo.

A tupinização foi um processo imposto pelos jesuítas aos povos indígenas não-falantes de Tupi, de modo a facilitar a catequização e os processos integracionistas e assimilatórios realizados nos aldeamentos e missões jesuíticas. Desde o século XVI, esse processo de tupinização apresenta o caráter violento de homogeneizar a população indígena. A resistência a ele, inclusive, legitimava a escravização, castigos e torturas físicas.

Seguindo adiante na história, a tupinização se expandiu pela sociedade não-indígena principalmente através do indianismo [da literatura do romantismo e também presente na arte modernista], em que se produziu intelectual e artisticamente a figura alegórica e mítica do “índio” estagnado no passado e fortemente associada ao [equivocado] “tupi-guarani”. É desse contexto que se constrói desde então, até hoje, uma suposta sobrevalorização exotificada em torno das chamadas “heranças indígenas” na sociedade brasileira.

🗨️ obs.: não são “heranças”, nós estamos vivos no presente!

🔍 Nota 3: Apesar de ter colocado equivocado entre colchetes, o tupi-guarani é também uma língua indígena que é específica do povo Tupi-guarani no litoral de São Paulo. Então apenas neste contexto, do povo Tupi-guarani, não é equivocado falar em língua tupi-guarani.

A presença de línguas indígenas no Brasil foi muito forte, produzindo duas línguas gerais que foram faladas majoritariamente pela população geral até o século XIX: Língua Geral Amazônica (LGA) e Língua Geral Paulista (LGP). Não se sabe muito atualmente sobre a LGP, muito menos sobre suas reais origens, pois, as descrições são que surgiu genericamente de um “idioma dos índios tupi de São Vicente e Alto do Rio Tietê”.

Aqui temos:

  • o fenômeno da tupinização enquanto massa homogeneizadora de povos indígenas chamados genericamente de “Tupi” e, assim, impossibilitando conhecer as reais origens de línguas e povos que constituíram a formulação da LGP;
  • a construção de uma narrativa que oculta a presença indígenas de povos “não Tupi” (referidos historicamente como, por exemplo, “tapuias” e “botocudos”) e, por conseguinte, suas possíveis contribuições na construção da LGP e mesmo de mapeamento étnico, de relações inter-étnicas e/ou com a sociedade não-indígena

Embora a LGA [que produziu a língua atualmente chamada de Nheengatu ou Tupi Moderno] não seja uma língua extinta, encontramos os mesmos dilemas que podemos pensar na LGP.

O que quero dizer com isso?

O “idioma dos índios tupi”, que deu origem às línguas gerais, pode ser na verdade uma grande variedade de línguas em ambas as regiões: setentrional [LGA] e meridional [LGP].

Mas não tem como falar sobre línguas indígenas, pela tupinização ou pela pluralidade, sem falar de Marquês de Pombal. Até o século XIX, apenas uma minoria da população falava português, a maioria falava justamente as línguas gerais. Mas com o decreto pombalino (final do século XVIII), proibiu-se o uso de línguas indígenas e se colocou a imposição da língua portuguesa. Isso afetou tanto a população indígena quanto a população não-indígena.

É a partir desse contexto que a LGP acabou por ser extinta e, para apagar a forte presença indígena nas regiões que faziam uso da LGP (não era só atual estado de SP), não se preocuparam em registrar sobre a Língua Geral Paulista.

Mas e como podemos identificar a tupinização atualmente, no século XXI? 🤔

A tupinização produzida inicialmente pelos jesuítas foi mais voltada a nós, indígenas, mas com o advento do indianismo e modernismo, ela ganhou novas formas: aprofundamentos e transformações… além de ter sido disseminada em massa para a população brasileira não-indígena. Dessa maneira, hoje temos uma postura generalizada de associarem tudo o que é indígena a esse imaginário “tupi” ou “tupi-guarani”.

Postura essa que também vem carregada da exotificação, na qual não é difícil encontrarmos comentários “era pra gente falar tupi”.

Porque na verdade não era, né?!

Sem contar que já há forte presença de contribuições do Tupi [mas não só] no português brasileiro.

Esse processo de exotificação é repleto de desconhecimento e também de desrespeito, uma vez que:

  • a língua Tupi não está totalmente distante dos não-indígenas;
  • seguem deslegitimando nossas identidades e nos violentando com discurso estagnado no século XVI, em que não-indígenas podem falar ou reivindicar falar línguas indígenas, sendo mais comum o Tupi [essa “língua Tupi” genérica 😅], mas nós indígenas não “podemos” falar português ou utilizar elementos da cultura não-indígena, porque senão “não somos mais índios”, “somos índios falsos”.

Isso, inclusive, ignora o contexto do decreto pombalino sobre proibição de línguas indígenas que falei anteriormente… enfim, a hipocrisia 🤡

  • perpetua o desconhecimento em torno da nossa diversidade étnica e pluralidade linguística que a tupinização oculta

Para finalizar:

Apesar de Tupi não vir dos invasores e colonizadores, ela foi instrumentalizada contra os próprios povos originários, de forma a dar cabo na dominação colonial em suas variadas formas:

▫️ homogeneizar os povos indígenas através dos processos da catequização, em que impositivamente ensinavam Tupi [dos Tupinambá, inicialmente registrado pelos jesuítas] para povos “tapuia”, ou seja, não falantes de Tupi

▫️ homogeneizar, de outra forma, os povos indígenas por meio da generalização de “índios Tupi” através de parâmetros e critérios arbitrários

▫️ estagnar uma figura alegórica e uma ideia do “índio Tupi” no passado, disseminada para a população não-indígena pelo indianismo e pelo modernismo

▫️ produzir desconhecimento na população acerca de nossas diversidades étnicas e pluralidades linguísticas, assim facilitando o racismo anti-indígena e a discriminação sobre nós… e isso está diretamente atrelado ao processo de exotificação também

Em termos práticos e atuais: a tupinização pode[ria] servir como ferramenta para negar direitos aos povos indígenas, principalmente os direitos à terra e território, justamente por criar uma massa do que seria “o índio” e, assim, o que foge desse padrão, não seria “índio”, portanto, teria seus direitos negados.

E apenas para deixar explícito a questão do etnocídio: a questão da homogeneização, que decorre do apagamento étnico dos povos.

Questão do epistemicídio: nossas línguas carregam nossas sabedorias ancestrais, de forma que a imposição de uma nova língua e a proibição da língua materna violentam profundamente a continuidade e manutenção de nossas culturas, costumes, epistemologias e sabedorias.

Indicações de leitura: 📚

BAGNO, M.; SILVA-REIS, D. A tradução como política linguística na colonização da Amazônia brasileira, 2018

ARGOLO NOBRE, W. C. de. Introdução à história das línguas gerais no Brasil: processos distintos de formação no período colonial. Salvador: UFBA, 2011

ABBADE, C. M.; PRUDENTE, C. M. Nomeação e renomeação do espaço: considerações sobre a “tupinização” da toponímia baiana. Salvador: UNEB, [sem data]. Disponível: http://www.filologia.org.br/xx_cnlf/completo/Nomea%E7%E3o%20e%20renomea%E7%E3o%20do%20espa%E7o%20-%20CLESE.pdf

LEITE, F. R. A língua geral paulista e o “vocabulário elementar da língua geral brasílica”. Campinas: Unicamp, 2013

Imagem escrita “Fenômeno da Tupinização” para ficar na previsão do texto

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