Por que eu não uso o termo racializado como sinônimo de não-branco?

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6 min readJun 13, 2020

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Há um tempo venho refletindo sobre minhas análises mais antigas nas relações étnico-raciais e ao utilizar racializado para me referir a grupos não-brancos na temática sobre racismo, não sou condizente com a minha própria linha de pensamento. Já utilizei o termo, embora eu compreenda que branco seja uma categoria racial. E agora vou explicar o porquê de não usar mais.

Antes de mais nada: questão racial é questão territorializada, ou seja, é contextualizada, não universal/globalizada. Por isso, deixo explícito desde já que estou falando do contexto brasileiro.

Vou começar por uma breve exposição cronológica, ou seja, pelos fatos históricos no decorrer do tempo, partindo do final do século XV com a invasão de Abya Yala. Depois entrarei na questão da racialização do branco. As referências vou deixar completas ao final do texto.

Como Aníbal Quijano expõe, a noção de raça surgiu com a invasão de Abya Yala, isto é, a partir de 1492. Raça foi (é) uma ferramenta de dominação colonial e, por isso, criada para ser uma classificação social hierárquica, de forma que inicialmente foi feita para marcar os povos originários que os europeus encontraram em Abya Yala, nomeando-os de “índios”.

A raça foi posteriormente ampliada para atribuir a povos africanos, como pretos/negros, e asiáticos, como amarelos ou marrons, com o mesmo intuito que para os “índios”: subjugar e inferiorizar, a partir dessa dominação racial hierárquica, extrair mão-de-obra para produzir suas mercadorias sem gastar com isso e conquistar/acumular (roubar rs) fortunas para os territórios europeus. Por isso, nesse início de configuração de uma nova estrutura social (raça), não há relatos [até onde eu sei] da autodenominação enquanto brancos pelos invasores europeus ibéricos, porque eles se definiam por suas nacionalidades. A criação da pertença étnico-racial branca foi feita posteriormente pelos britânicos.

A criação da raça branca foi importante pra manter a dominação racial e, portanto, foi adotada no contexto brasileiro, porque as populações indígenas e africanas/negras eram quantitativamente maiores do que de europeus e seus descendentes brasileiros, portanto, com grandes chances de implodirem essa estrutura colonial de dominação racial. Nesse contexto, a pertença nacional europeia no Brasil como fator dominante para aplicação do projeto colonial não soava mais tão efetiva, pois, os brasileiros jamais seriam europeus; então, a raça branca, que antes não era uma categorização no contexto brasileiro, se tornou uma opção extremamente viável, de maneira que ela não se constituiu somente por marcadores fenotípicos (traços físicos), mas pelo aprimoramento do que caracterizaria o “ser branco”. Daí, temos o surgimento da branquitude, um sistema estrutural de hierarquização e dominação racial através dos contextos social (por meio principalmente das classes sociais), cultural, religioso e político, mas também um sistema de mentalidade, de forma a expandir o alcance dessa dominação entre não-brancos. (falar sobre a mentalidade da branquitude é algo bem longo, fica pra outro dia, então vou seguir com o assunto da racialização branca)

Agora colocado esse breve contexto, vou entrar na questão central do texto. Pra isso, vou colocar a definição do conceito de racialização exposto por Appelbaum, Macpherson e Rosemblatt:

“Racialização como o processo de caracterização das diferenças humanas de acordo com os discursos hierárquicos estabelecidos desde o período colonial e os legados nacionais de cada marcador”.

Ou seja, a construção de marcadores da diferença a partir dos contextos social e cultural e de traços fenotípicos para determinar as categorias raciais é esse processo de ser racializado, tendo sempre em mente que essa construção se dá a partir dos discursos… e quem produziu os discursos ao longo dos séculos? Pessoas brancas.

Mas como branco entra na questão da racialização se eles são os produtores dos discursos? Frantz Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas faz uma análise em algumas dimensões sociais sobre as relações entre brancos e negros, de forma que o branco é o padrão social, enquanto o negro é o Outro (estendo esse Outro para indígenas aqui no Brasil e posteriormente com a vinda dos amarelos, a eles também).

Nós temos um processo de caracterização de marcadores da diferença que são padronizados, então, quando você marca esses Outros [não-brancos] e cria um padrão [branco], você paradoxalmente marca o padrão justamente pela ótica de que tudo o que não é Outro, é padrão. É como se o processo de caracterização da raça branca se desse a partir do próprio “eu-lírico”.

Em outras palavras, a construção dos marcadores da diferença se dá a partir dos discursos historicamente produzidos por brancos, para marcar pessoas indígenas, negras, amarelas e marrons, de forma que o “eu-lírico” do discurso [branco] se “autodemarca” pela exclusão dos marcadores Outros. Ou seja, para construir os marcadores do Outro, você cria seus elementos padrões, pois, é preciso estabelecer um ponto de partida, um parâmetro de referência que constituíra as características que são “suas” e as que “não são suas”. Então, mesmo que padronizados, esses elementos marcadores também são marcadores da diferença.

Através da mentalidade da branquitude se instituíram os marcadores da diferença dos brancos como padrões da sociedade; é por meio da análise do padrão que encontramos o processo de racialização branca.

Esse padrão é também um processo, por isso não abro mão de analisar, pois, caso contrário, cairia na naturalização e essencialização de uma construção produzida pelo meio que ele [padrão] está inserido.

Em outras palavras, branco no Brasil tem marcadores específicos que através dos discursos hierárquicos, produzidos pelos próprios brancos (por isso a referência ao “eu-lírico”) ao longo dos séculos fez com que, embora fosse uma população minoritária quantitativamente, construiu uma sociedade que naturaliza alguns marcadores da diferença [de brancos] em uma imagem padrão.

Se não houvessem marcadores para brancos brasileiros, que são padronizados é verdade, não saberíamos identificar quem é branco no Brasil, pois, teríamos simplesmente referências de fora, como por exemplo Europa e Estados Unidos. Não daria muito certo e não seria muito condizente com as nossas realidades, né?!

Dá até pra dizer que branco é uma racialização não-intencional se pensarmos no objetivo inicial da criação da raça (e, consequentemente, da racialização) com a invasão de Abya Yala que falei no início do texto. Pode parecer ruim? Mas pra mim soa bom, porque mostra que essa estrutura racial e esse sistema racista não são tão bem articulados e tão indestrutíveis quanto fazem parecer.

Inclusive, acho bom pontuar que eu não meço “nível de racialização” nem nível de sofrimento sobre esses processos para pessoas não-brancas, porque não cabe a mim… a única coisa que eu pontuo é: a racialização para os Outros (indígenas, negros, amarelos e marrons) foi violenta e dolorosa (e pode continuar sendo, sim), mas branco não sofre com os processos em torno de sua racialidade, pois, a raça branca quem construiu os discursos de forma a garantir privilégios raciais para si e impor violência e opressão a todos os que não fazem parte dela. De forma nenhuma falar sobre racialização de brancos é falar de uma narrativa de opressão racial para brancos, é justamente a forma de falar sobre como construíram as ferramentas de dominação e opressão para os não-brancos.

Agora, entra uma outra questão que decorre de um termo que utilizei aqui: não-brancos.

Por que eu uso o termo não-brancos? Não é eurocêntrico?

Como eu falei antes, a noção de raça foi criada por europeus, que decorre de uma hierarquização de povos no mundo partindo da referência europeia como topo da sociedade e ápice da evolução, do desenvolvimento, da civilização~, então ela [raça] por si só seria eurocêntrica. Mas a meu ver é uma análise simplista (e posso estar enganada, mas só vi argumentos rasos em torno dessa discussão) tratar o termo “não-branco” como eurocêntrico, principalmente no que se refere ao debate antirracista… ainda mais no Brasil.

Enquanto indígena, eu costumo utilizar o termo não-indígena em discussões raciais, mas eu utilizo não-branco quando me refiro a pauta antirracista ou à estrutura racista. E por quê? Justamente porque na estrutura racial, os únicos que detêm de privilégios raciais são brancos, então para discutirmos sobre racismo, eu me refiro aos povos que sofrem com racismo, que são todos que não são brancos.

Ainda sobre o Brasil, é importante termos em mente que a raça branca aqui não é constituída da mesma forma que na Europa, então, ao falarmos de racismo e antirracismo, tenho comigo que a melhor estratégia é utilizarmos os termos que evidenciam a hierarquia da dominação racial.

Referências que citei:

APPELBAUM, N. P.; MACPHERSON, A. S.; ROSEMBLATT, K. A. Race and Nation in Modern Latin America, 2003

FANON, F. Peles Negras, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008

QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2000

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